Abstinência, centros de atenção psicossocial antidrogas e comunidades terapêuticas: pilares para a reorientação da Política Brasileira de Saúde Mental e Drogas
Para superar problemas como emergências psiquiátricas lotadas, leitos psiquiátricos insuficientes e serviços substitutivos em saúde mental, o governo brasileiro tem se dedicado a ampliar e equipar a rede de atenção psicossocial: hospitais psiquiátricos, hospitais-dia, ambulatórios especializados, centros de atenção psicossocial (PACs AD IV) e comunidades terapêuticas.
Seu objetivo é aumentar o financiamento e o número de leitos de hospital psiquiátrico, bem como garantir a oferta de todos os tratamentos eficazes para transtornos mentais refratários graves, incluindo eletroconvulsoterapia, que, embora polêmico politicamente, é considerado eficaz na comunidade médico-científica.
Também se posiciona firmemente contra a legalização e discriminação das drogas, desenvolvendo estratégias de tratamento baseadas não apenas na redução de danos, mas na abstinência, apoio social e educação em saúde.
As estratégias de abstinência visam manter os pacientes afastados das drogas. Essas iniciativas visam reduzir os cerca de 23 milhões de brasileiros que necessitam de assistência psiquiátrica, bem como os 75 a 85% de brasileiros com transtornos mentais que não têm acesso a cuidados de assistência psiquiátrica de boa qualidade.
No contexto global, o Brasil não pode ignorar o Relatório Mundial sobre Drogas das Nações Unidas de 2019, que destacou a expansão do mercado de drogas ilícitas, incluindo a produção recorde de cocaína e ópio e os cerca de 275 milhões de consumidores de drogas em todo o mundo.
A cannabis foi citada como a droga mais consumida, com 192 milhões de consumidores no último ano. As mortes diárias relacionadas com drogas em todo o mundo aumentaram 60%. As taxas de prevalência de cocaína inalada e fumada no Brasil sugerem que este tem uma das maiores taxas de consumo anual e é um dos maiores mercados de cocaína do mundo.
Heckert et al. investigaram a prevalência de transtornos mentais em moradores de rua de Juiz de Fora, cidade de 424.479 habitantes no sudeste brasileiro. Entre as pessoas com 18 anos ou mais que estavam em situação de rua há pelo menos 12 meses, 100% tinham pelo menos um diagnóstico psiquiátrico de acordo com a CID-10.
Os transtornos mais frequentemente diagnosticados foram alcoolismo/abuso (82,0%), transtornos do humor (32,5%), dependência/abuso de drogas (31,3%) e psicose esquizofreniforme (9,6%), com alto índice de comorbidade (78,3%). Esses resultados foram atribuídos à fragilidade nacional do sistema de assistência aos sem-teto.
O fenômeno do que foi popularmente chamado de “Cracolândias”, ou seja, cenas de consumo de drogas ao ar livre, vem se expandindo desde 1989.
Uma dessas áreas em São Paulo foi estudada por Duailibi et al., que determinaram que o Brasil é o maior mercado produtor de crack no mundo. São 370 mil usuários regulares de drogas residentes nas 26 capitais dos estados e no Distrito Federal.
Aproximadamente 80% desses usuários de drogas consumiram drogas em locais públicos como as Cracolândias, sendo a mais antiga e populosa a cidade de São Paulo, com 500 moradores e mais de 2 mil visitantes regulares.
As novas ações e orientações sobre saúde mental e drogas divulgadas desde dezembro de 2017 promoveram uma mudança de paradigma na assistência.
Novos pontos marcantes foram incorporados devido à piora dos indicadores, como o aumento das taxas de suicídio, altas taxas de transtornos mentais entre os moradores de rua, o crescimento das Cracolândias e o aumento do número de doentes mentais graves encarcerados.
Destaca-se a criação de um novo modelo de CAPs AD IV, que funciona 24 horas por dia/7 dias por semana e oferece atendimento especializado psiquiátrico, clínico e multiprofissional. Esses centros de atenção psicossocial devem estar localizados próximos a áreas de consumo de drogas ao ar livre, ou seja, áreas de maior vulnerabilidade social.
A aprovação da Lei 13.840/2019 previu, entre outras coisas, a internação involuntária de dependentes químicos para desintoxicação quando outras terapias oferecidas pela rede de atenção à saúde forem impossíveis.
Ressalta-se que esse tipo de internação psiquiátrica dura apenas o tempo necessário para a desintoxicação (no máximo 90 dias), podendo a família ou representante legal interromper o tratamento a qualquer momento.
As comunidades terapêuticas para apoiar a recuperação do uso de drogas são uma alternativa significativa para pacientes com transtornos mentais e comportamentais devido ao consumo de drogas.
Esses pacientes frequentemente relatam falta de opções e pronto-socorros superlotados, o que resulta em um número significativo que deve aguardar a internação psiquiátrica.
As comunidades terapêuticas, instituições sociais voluntárias que abrigam dependentes químicos, são regulamentadas pela Resolução 01/2015 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD).
O tratamento nesses abrigos é transitório e pode variar de 12 a 24 meses, dependendo da avaliação diagnóstica psiquiátrica.
A Organização Pan-Americana da Saúde informa que os sistemas de saúde ainda não responderam adequadamente à carga dos transtornos mentais, indicando que há uma grande distância entre o tratamento necessário e o fornecido em todo o mundo.
A má qualidade do tratamento é outro problema grave nos sistemas de saúde. Além do apoio dos serviços de saúde, as pessoas com transtornos mentais precisam de ajuda para acessar programas de educação adaptados às suas necessidades e encontrar empregos e moradia para que possam levar uma vida ativa em suas comunidades locais.
A Lei 13.819/2019 que instituiu a Política Nacional de Prevenção de Lesões Autoprovocadas e Suicídio, destaca a violência autoinfligida e torna obrigatória a notificação do seu conhecimento. Um dos propósitos da lei foi informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e relevância da automutilação/suicídio como problema de saúde pública evitável.
Nesse sentido, e considerando os aspectos jurídicos, culturais e científicos envolvidos na formulação de uma nova política nacional de saúde mental e drogas, o Brasil parece estar caminhando para um tratamento mais aceitável e prático das pessoas com transtornos mentais e comportamentais.
Fonte:
Weber CA, da Silva AG, Nardi AE, Juruena MF. Abstinence, anti-drug psychosocial care centers and therapeutic communities: pillars for reorienting the Brazilian Mental Health and Drug Policy. Braz J Psychiatry. 2021;00:000-000. http://dx.doi.org/10.1590/1516-4446-2020-1647