A bebida alcoólica e a pandemia do coronavírus

*Por Dr. Mário Sérgio Sobrinho

O uso de drogas, entre elas, o álcool, é assunto mundialmente importante, tanto que a Organização das Nações Unidas (ONU), ao definir os “17 Objetivos para Transformar nosso Mundo”, considerou essencial “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar, em todas as idades” fixando como uma das ações importantes “reforçar a prevenção e o tratamento do abuso de substâncias, incluindo o abuso de drogas entorpecentes e uso nocivo do álcool.[1]

Especificamente em relação à prevenção ao uso do álcool e diante da necessidade de a população permanecer temporariamente em isolamento social, em tempos da pandemia do coronavírus, a seção europeia da Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou limitar o consumo de bebida alcoólica durante a quarentena, sob o principal argumento de que consumir essa substância compromete a imunidade das pessoas.

A OMS indicou, também, que o excesso de álcool pode causar intoxicação prejudicial à saúde física e mental das pessoas, além de contribuir para desencadear comportamentos de riscos, que poderiam ser exemplificados desde o descuido com as medidas de proteção e de higiene individual recomendadas para evitar contaminações por vírus até, em casos extremos, o incremento de comportamentos desequilibrados, especialmente, naquelas pessoas que são agressivas, com risco de gerar quadros de violência interpessoal[2], inclusive, doméstica, sem falar que a intoxicação alcoólica torna a pessoa mais propensa ser vítima de agressão.

Cabe acrescentar ser conhecido da ciência que o uso agudo e crônico de álcool[3] está associado aos casos de suicídio por proporcionar desinibição, impulsividade, prejuízo no julgamento, além de haver registros que o abuso do consumo de álcool ocorre para afastar o sofrimento que acompanha esse ato humano extremo[4], cuja redução da incidência é demanda mundial.

Embora sejam temas diversos, a prevenção à contaminação pelo coronavírus e a prevenção aos efeitos danosos do álcool, ambos ocupam a área da saúde e merecem atenção, sobretudo, porque do mesmo modo que durante a pandemia a ciência orienta a alteração de determinados hábitos e modos de vida, ela também enfatiza que nesse período será preciso redobrar as cautelas relativas ao uso do álcool.

Sob esse ângulo, cabe observar a Política Nacional sobre o Álcool, aprovada pelo Decreto 6.177, de 22 de maio de 2007 e a Política Nacional sobre Drogas (Pnad), trazida pelo Decreto 9.761, de 11 de abril de 2019. O último texto apresenta referências que ganham destaque durante a pandemia, servindo para fundamentar ações das autoridades que enfrentam essa crise de saúde pública e, também, para orientar determinados comportamentos individuais.

A introdução do texto da Pnad, isto é, do Decreto Federal de 2019 enfatizou, com base em evidências científicas, que o álcool é a substância lícita cuja experimentação ocorre mais cedo entre os adolescentes brasileiros, provavelmente em razão da ampla disponibilidade; indicou, também, ser esse público adolescente muito vulnerável aos efeitos do álcool, notadamente porque nessa fase da vida o cérebro humano ainda se encontra em desenvolvimento e; apontou ser preocupante para as pessoas, independentemente da idade, a associação do quadro de depressão e de abuso de álcool. Além disso, o texto da Pnad ressaltou, a partir da análise de resultados de pesquisas, que 5% da população brasileira já tentou o suicídio, ficando apurado em quase um quarto dessas pessoas, antes da tentativa, haviam consumido álcool.

Ao analisar os pressupostos reunidos para sustentar as ideias expostas pela Pnad, vislumbram-se importantes fundamentos, como o reconhecimento do vínculo familiar, a espiritualidade, os esportes, entre outros, como fatores de proteção ao uso, ao uso indevido e à dependência do álcool, os quais podem sustentar ações relativas ao álcool durante a pandemia do coronavírus.

A intoxicação alcoólica é situação séria, não deveria ser glamourizada nem gerar estigmatização caso ocorra com alguém, seja em ambiente privado ou público, menos ainda quando a imagem dessa situação for captada e exibida pelos meios de comunicação.

A propósito, cabe registrar que durante a pandemia foi apontada aparente irregularidade em cenas envolvendo o consumo de álcool durante apresentação artística transmitida por uma rede social (live) e, por consequência, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) manifestou interesse em apurar o episódio justificando a intervenção no fato de ter havido ingestão excessiva de bebida alcoólica, sem qualquer aviso de conteúdo impróprio para menores de idade. Em apresentação semelhante, uma dupla de artistas sofreu crítica pública por um deles ter demonstrado sinais de intoxicação alcoólica durante a exibição[5].

A pandemia do coronavírus está demonstrando a necessidade de a população evitar determinados comportamentos comuns até pouco tempo atrás, para reduzir a exposição e evitar uma contaminação indesejável, adotando medidas preventivas e restritivas em benefício da saúde individual e geral. Essa capacidade humana de mudar hábitos diante do risco, sugere considerar ser momento para o governo e a sociedade alterar em posturas e adotarem práticas de prevenção no campo do álcool, inclusive, com suporte no texto da Pnad.

Uma delas, muito simples, se funda no entendimento que álcool é substância que, embora lícita, não deve ser consumida ou oferecida às crianças e aos adolescentes, porque pelas razões antes mencionadas, álcool para menores é expressamente vedado pela legislação vigente.

Mais do que isso, ao adulto que consome álcool regularmente é sugerido pensar se em alguma oportunidade faz uso dessa substância com a finalidade de aliviar tensões ou buscar relaxamento, especialmente, se esse uso de bebida alcoólica ocorre diante das crianças e dos adolescentes. Referido comportamento, aparentemente comum e, até poucas gerações atrás pouco comentado, é arriscado, porque crianças e adolescentes poderão registrar isso na memória e, num futuro próximo, reproduzir o comportamento do adulto que, muitas vezes, lhe serve como referência de vida.

Esse comportamento relacionado ao uso de álcool ganha destaque nesse momento de isolamento social, no qual há maior tempo de convivência entre as pessoas que residem juntas. Por isso é importante que os adultos evitem usar álcool, mesmo em quantidade moderada, especialmente diante das crianças e adolescentes. Caso isso, inevitavelmente, ocorra é importante conversar com eles antes acerca da vedação do consumo de álcool aos menores de 18 anos de idade, esclarecendo que essa proibição tem fundamento científico e protetivo, porque até essa idade, inclusive, depois dela, o desenvolvimento do cérebro humano pode ser prejudicado pela ingestão do álcool.

É necessário reforçar a ideia, frequentemente exposta pela ciência, que o álcool pode agravar quadros de depressão e de ansiedade, transtornos que certamente serão mais comuns no contexto da pandemia de Covid-19, conforme alerta a psiquiatra Alessandra Diehl, especialista em dependência química e vice-presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos Sobre o Álcool e Outras Drogas)[6], abordagem que, conforme antes destacado, está inserida no texto introdutório da Pnad ao apontar a prevalência da depressão entre abusadores de álcool.

Em relação a estratégias mais amplas, é importante que a sociedade discuta outras medidas para tornar mais seguro e saudável o período de quarentena, a partir da proposta da OMS relacionada aos riscos do álcool, se dispondo a reduzir a oferta de bebida alcoólica durante esse período e, também, retome o tema da restrição da publicidade do álcool (incluindo a cerveja) nos meios de comunicação social; aliás, assunto objeto do Projeto de Lei da Câmara nº 83/2015, atualmente, em tramitação pelo Senado Federal.

Observado isso, seria importante veicular orientações consistentes acerca dos riscos à saúde resultado do consumo excessivo de bebida alcoólica durante a quarentena e, também, estimular que os governantes se disponham normatizar e controlar a quantidade das vendas de álcool diretas ao consumidor, inclusive, nas compras feitas à distância com entrega em casa, na forma conhecida como delivery.

Todas essas medidas são adequadas às políticas e às ações gerais de prevenção ao álcool indicadas pela Pnad, que ainda orienta estimular a regulação do horário e de locais de venda de álcool e, também, recomenda o uso da tributação dos preços, porque essas estratégias inibem a oferta e o consumo de álcool, tal qual a comentada restrição da publicidade.

A título de comparação, verifica-se que o limite de venda de quantidades de álcool, inclusive cerveja e vinho, foi adotado por alguns estados na Austrália, país que vem manejando com cuidado as situações que envolvem a pandemia do coronavírus, de modo que lá o consumidor dessa substância pode adquiri-la em quantidade previamente indicada, o que sinaliza para o risco do consumo de álcool durante a pandemia e busca desestimular abusos.

Da ciência à arte, o álcool está presente na vida das pessoas, mantendo seu emprego em tempos normais e de pandemia, não somente como bebida alcoólica, mas também na apresentação em gel para higienizar mãos e objetos. Entretanto, é preciso destacar que há risco à saúde na ingestão do álcool, cujo uso moderado é restrito aos adultos e a ingestão jamais deveria servir para atenuar problemas ou ter justificativa ineficaz, conforme parece ter ocorrido durante a pandemia de Gripe Espanhola (meados de 1918) quando, no Brasil, a população extraiu da ciência a ideia de que o álcool “matava germes” para estimular o consumo de uma mistura, supostamente terapêutica, de cachaça, mel e limão.

 

[1] Disponível :<https://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/>. Acesso 11 mai. 2020.

[2]Nota do Comitê para Regulação do Álcool (CRA) sobre uso de bebidas alcoólicas na pandemia de COVID-19 Disponível:< http://fcmsantacasasp.edu.br/nota-do-comite-para-regulacao-do-alcool-cra-sobre-uso-de-bebidas-alcoolicas-na-pandemia-de-covid-19/>. Acesso 13 mai. 2020.

[3] Alcohol and suicidal behavior: what is known and what can be done. Conner KR, Bagge CL et al. Disponível: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25145740>.Acesso 11 mai. 2020.

[4]Comportamento suicida e abuso de álcool. Pompili M, Serafini G, Innamorati M, et al. Disponível: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20617037>. Acesso 11 mai. 2020.

[5] Disponível: < https://exame.abril.com.br/marketing/conar-investiga-gusttavo-lima-e-ambev-por-ingestao-excessiva-de-alcool/>. Acesso 11 mai. 2020.

[6]Disponível: < https://www.bonde.com.br/saude/corpo-e-mente/consumo-de-alcool-na-quarentena-preocupa-psiquiatras-516177.html>. Acesso 13 mai 2020.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-mai-18/mp-debate-bebida-alcoolica-pandemia-coronavirus. Acesso 19 mai 2020

*Dr. Mário Sérgio Sobrinho é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Foi bolsista do Programa Hubert H. Humphrey com especialização em Tribunais de Drogas e Abuso de Substâncias Químicas (EUA – 2011). Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Professor de Curso à Distância (Justiça Terapêutica) da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Membro da Diretoria de Alcoólicos Anônimos (A.A.) do Brasil.