Vapes e Cia.: cada vez mais perto de se vender na padaria.
Por Guilherme A. R. Franco (*)
O Supremo Tribunal Federal tornou a colocar na pauta de julgamento [6/3, quarta-feira], recurso extraordinário com o tema da descriminalização das drogas hoje proibidas por lei.[1]
Até o momento, cinco dos eminentes Ministros consideraram em seus votos ser inconstitucional o artigo 28 da Lei 11.343/2006, que criminaliza [sem todavia impor a pena de prisão] condutas como comprar, portar, transportar [dentre outras ali definidas] drogas para consumo pessoal. [2]
E também há em tal recurso discussão subjacente a respeito de uma pretensa “falta de critérios” na atual lei de drogas, do que seria um “usuário” e como se tipificar adequadamente a figura do tráfico – prevista no artigo 33 e seguintes do mesmo diploma.
Sua Excelência o Ministro Luís Roberto Barroso, em recente entrevista dada à CNN[3] [04/03 pp.] chegou a afirmar textualmente que o objetivo do julgamento não mais seria a análise da constitucionalidade do artigo 28 em comento [vez que já existiria o comando legislativo a respeito – emanado do Congresso Nacional]; antes, porém – deveria a Corte se debruçar no estabelecimento de critérios objetivos, alicerçados na quantidade/peso da droga apreendida no caso concreto; e a partir daí se separar o consumidor do fornecedor da substância.
Haveria, uma vez se definindo uma máxima quantidade/peso da droga em poder do agente, uma espécie de presunção de que o portador, no caso em exame, seria usuário.
Até o presente momento, pode-se apanhar dos que já proferiram seus votos, inclusive o Ministro Cristiano Zanin [o único dentro dos autos a afastar a tese da inconstitucionalidade] que o critério diferenciador ficaria entre 25 e 100 gramas [ou seis plantas fêmeas] e restrito à Cannabis [maconha].
E a Corte, pelo que se pôde depreender, parece que não iria se ater às demais substâncias proscritas: e.g, , a cocaína [incluindo o crack] opiáceos naturais ou sintéticos [como o Fentanyl], e todo um arsenal de substâncias sintéticas [THC “sintético”, drogas K, anfetaminas e derivados, GHB (Boa Noite, Cinderela), etc…].
Pois bem.
Sem adentrar de modo mais aprofundado o mérito da pretensa necessidade do critério diferenciador [entre o consumidor e o traficante], já que o comando normativo é claro [4], importa se indagar: haveria respaldo científico e jurídico nessa tabela diferenciadora – que toma por critério algo entre 25 a 100 g de Cannabis e/ou seis plantas?
Ousamos dizer que não.
Em primeiro lugar, nossa legislação proíbe com acerto a posse de uma substância química fitocanabinoide – que é o THC, bem como o plantio da Cannabis [que em qualquer espécie ou variedade pode conter THC, em maior ou menor concentração – respectivamente, Cannabis Sativa e Cannabis Ruderalis – ou cânhamo/hemp], em desacordo com disposição legal ou regulamentar.
O THC, ao contrário do que se propaga na narcomídia, não é o mesmo que açúcar, aminoácido, proteína ou gordura. Não é alimento indispensável ao nosso corpo – que por sinal já produz um endocanabinoide, a “anandamida” [da mesma forma como produz endo-opioides; e não se viu até hoje quem propusesse a venda de heroína com CPF na nota…].
O THC [na molécula mais conhecida que é Delta 9 THC] é perturbador do sistema nervoso central (SNC) e associado, cada vez mais, a inúmeros males físicos e psíquicos – notadamente aos cérebros em formação [cuja “maturação” se dá em certas regiões cerebrais aos vinte e cinco anos de idade].
Nessa linha, as plantas de Cannabis [contendo o THC] não são o mesmo que erva-doce ou camomila. THC não é maracujina.
A lista dos males associados ao THC é extensa : doenças pulmonares, cardíacas, determinados tipos de câncer, hiperêmese [fortes e frequentes enjoos], dependência química, anedonia [síndrome amotivacional], ansiedade, depressão, psicoses, esquizofrenia, ideação suicida, afora as síndromes fetais diversas [no caso de consumo da droga pela gestante].
Em segundo, há diferentes concentrações da droga quer nas plantas em si [há variedades geneticamente modificadas com concentração bem acima de 20% de THC], quer nos diferentes produtos e formas de consumo da substância.
Dentre as novas formas de consumo do THC em escala industrial, há produtos comestíveis [“edibles”] como “jujubas” [balas], pirulitos, chocolate, bebidas em geral – tudo com forte apelo ao público infanto-juvenil e com milhares de registros de intoxicação de crianças nos estados norteamericanos que se renderam ao Big Marijuana.
Sem contar os hiperconcentrados de THC, uma espécie de “melado” ou no ponto de rapadura, conhecido como “dabbing” ou “brownsugar” – cuja fabricação caseira pode acarretar queimaduras gravíssimas em quem faz tal produto – em um cozimento que visa a alcançar mais de 80% de concentração da droga.[5]
E a “involução tecnológica” que chegou como uma arma química de destruição em massa sabor tutti-frutti?
Como Big Tobacco e Big Cannabis sempre foram irmãos “ocultos” [e que agora aparecem de mãos dadas], soa mais que evidente que se houver a menor flexibilização na atual Lei de Drogas [realce-se: atualizada em 2019] – assentaremos nefastos tijolos da morte para o alicerce dos castelos de fumaça de uma Vaperland ou Cannabisland tropical.
Tomemos, à guisa de exemplo, o parâmetro adotado pelo Ministro Alexandre de Moraes – que seria algo como 60 g de partes secas da planta Cannabis.
Já enfatizamos que há diversas modificações genéticas na planta, de maneira que não podemos afirmar [óbvio], que no caso concreto, quaisquer 60 g de maconha terão exatamente a mesma concentração de THC.
E esses mesmos 60 g podem facilmente equivaler a 60.000 mg de THC “isolado”.
Imagine-se: 1 (um) vape/cigarro eletrônico, com cartucho [e-juice/e-liquid] na casa de 1 g, contendo 600 mg de THC – a propósito, sessenta vezes mais o suficiente para se causar entorpecimento – considerando-se para tanto certa “dose padrão” de 10 mg da substância.
Na trilha de S. Excia., quem fosse surpreendido com até 100 (cem) vapes nessas condições [alegando consumo pessoal] não iria responder por absolutamente nada [se adotada a tese da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas]; ou poderia simplesmente alegar que o arsenal – que iria levando ocasionalmente a um estabelecimento de ensino – seria meramente para consumo pessoal; estoque para “todo o ano letivo”…
Acresça-se que os “vapes” são mui furtivos [assemelham-se a pen-drives, apontador, marca-texto, “joaninha”…], saborizados e aromatizados; não “entregam” as características organolépticas de Cannabis [como o odor acentuado]. Tudo “vira” morango, menta, baunilha, bergamota ou cupuaçu.
Um “vape” pode conter qualquer substância: dos sais de nicotina, passando pela cocaína, THC proveniente da planta, o “sintético” [que se liga no cérebro a receptores canabinoides de forma muito mais prejudicial ainda]… até o temível e devastador opiáceo sintético Fentanyl.
As autoridades norte-americanas, diante da epidemia de opiáceos que ceifa mais de setenta mil vidas/ano por lá advertem: “one pill, can kill”/um comprimido pode matar.
Então… a prevalecer o critério diferenciador de tais ministros do STF, o que diria um agente que fosse surpreendido com uma centena de “vapes” contendo na rotulagem “THC”; mas que depois em exames laboratoriais se detectasse nas cargas apreendidas: “THC sintético” – ou qualquer outra substância, em um verdadeiro “coquetel Molotov cerebral”.
Iria alegar a chamada “analogia” em seu favor.
Em linguagem bem simplificada: situações semelhantes/análogas devem ser interpretadas sempre de modo mais benéfico para quem responde a um crime.
Nesse cenário, o caos nos procedimentos criminais seria tamanho – que o próximo passo a ocorrer seria se pressionar o Congresso para a ampla legalização dos “vapes” – com o THC a reboque [da papinha do bebê ao chazinho da vovó].
Isso é tão claro que não dá nem para se esconder na fumaça.
Ou, se nos permitem, trazendo algumas despretensiosas reflexões de outro texto de nossa lavra:
“Um sinal de fumaça para que caminhemos a passos entorpecidos para o poço sem fundo do “thcinismo” ou outras dependências.
Será, outrossim, a chave para a aprovação do pernicioso PL [Projeto de Lei n. 399/15 – ora em trâmite na Câmara dos Deputados] e transformar Pindorama em Cannabisland em um primeiro momento. E em breve tempo, Cocaineland.
Tudo com muito THC e nos dispositivos eletrônicos para fumar, nas “paçoquinhas”, balinhas e afins – na boca do caixa das padarias e mercados. Formatos hightech “pensados” maldosamente para os millenials.
Ainda há tempo para se dizer neste fazendão de meu Deus, no qual se plantando tudo dá: “todo cérebro e todo pulmão importam! Não é sobre direita ou esquerda – até porque esses órgãos têm dois lados em simetria. É sobre cuidar do broto, para que a vida nos dê flor e frutos.”
Oremos, amparados pelo preâmbulo da nossa Magna Carta, pelas presentes e futuras gerações.
(*) 30º. Promotor de Justiça de Campinas/SP. Especialista em Dependência Química pela UNIAD/UNIFESP.
[1] Recurso Especial n. 635.659. Repercussão Geral. [Tema 506] – que se amoldaria à agenda 2030 da ONU objetivando “saúde e bem estar” (3), com “paz, justiça e instituições eficazes” (16).
[2] A saber: Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber. O Ministro Cristiano Zanin votou pela constitucionalidade do artigo 28.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=seO4NafQtE0 – in verbis – “não há descriminalização de coisa alguma”, a despeito de seu voto antes proferido pela inconstitucionalidade do artigo 28. Acesso em 5.3.2024.
[4] Artigo 28, § 2º – “ Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
[5] Há várias advertências de Drug Enforcement Administration (DEA) nesse sentido.