A pandemia de coronavírus trouxe muitos medos e incertezas, medidas de isolamento social, mudança abrupta da rotina das pessoas em todo o mundo. Além disso, muitas pessoas passaram a trazer para dentro de casa hábitos que tinham na rua, como o de beber, por exemplo.
Como isso afeta a vida familiar? Como os filhos veem o aumento do uso de álcool e tabaco por seus familiares? O uso de álcool e tabaco são fatores de risco para a COVID-19?
Dr. João Paulo Becker Lotufo*, pediatra e especialista em prevenção ao uso de álcool e tabaco foi o convidado da Live com Especialistas do dia 30 de abril que discutiu o “Isolamento Social e o Aumento do Consumo de Álcool e Tabaco diante dos Filhos”.
A Live completa está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YKN-79ADyBg
Segue abaixo um resumo deste bate-papo muito interessante e esclarecedor:
Pergunta: Com o isolamento social, as pessoas passaram a trazer para dentro de casa hábitos que tinham na rua, como o de beber e usar outras drogas. Várias pesquisas vêm alertando para o aumento do consumo de álcool, tabaco e outras drogas durante este período, o que é muito preocupante, uma vez que o acesso ao tratamento de dependências químicas está mais difícil. Esse aumento do consumo, sobretudo do álcool, durante a reclusão pode vir a se transformar em uma dependência? Como ficam nossos filhos, vendo tudo isso e sofrendo as consequências do alcoolismo?
Dr. Lotufo: Eu comecei a estudar essa questão quando comecei a atender, em meu consultório, casos de coma alcoólico aos 14, 15 anos de idade. Observei que, muitas vezes, os amigos do adolescente iam para a sua casa e o próprio pai “amigão” deixava uma garrafa de vodka para eles “esquentarem” antes de ir para uma festa.
Isto nos mostrou o que, hoje, todo mundo já sabe: em geral, a experimentação precoce de álcool começa dentro de casa!
Alguns pais alegam que, fazendo isso, estão “ensinando” seus filhos a beber. Mas isso é uma “faca de dois gumes” pois se o adolescente bebe com o pai dentro de casa, fora de casa ele irá beber também com os amigos e em quantidade maior.
Além disso, já se sabe que o cérebro do jovem se desenvolve até os 21 anos (podendo ir até os 25 anos) e que, então, qualquer droga iniciada antes da maturação do cérebro aumenta a chance de causar dependência.
Também precisamos considerar o exemplo que o pai dá a seu filho quando consome bebida alcoólica. Durante a quarentena, a chance do adolescente começar a beber é maior, uma vez que as pessoas com as quais convive dentro de casa estão consumindo mais álcool. Se o álcool faz parte da rotina da família, é preciso repensar o quanto você bebe em casa e o quanto você compra de bebida alcóolica.
Na medicina, usamos o que chamamos de “Aconselhamento Breve”: gastar de 2 a 5 minutos falando sobre um determinado assunto com seu filho. Isto é mais efetivo que dar “aquela bronca” quando seu filho de 14 anos chega embriagado em casa.
O aconselhamento breve pode e deve ser usado nas famílias, na escola e eu uso no consultório pediátrico para falar com os pais. Na verdade, essa conversa com a família deve começar ainda intraútero quando os pais, por exemplo, fumam ou consomem álcool.
Pergunta: Tão fácil quanto afirmar que o formato de lives com apresentações musicais vive um momento sem precedentes no País, em função do isolamento social, é perceber que o segmento de bebidas alcoólicas tem sido o grande protagonista em termos de exposição de marca nessas transmissões. Solidificando a posição do sertanejo como o gênero mais popular do Brasil, algumas transmissões ultrapassaram 3 milhões de acessos simultâneos e foram patrocinadas pela indústria cervejeira. Como proteger nossos filhos, que ainda não sabem reconhecer seus limites e acabam vendo os artistas como exemplo, para que não acreditem que beber em excesso é normal e “legal”?
Dr. Lotufo: A abordagem deve ser diferente, de acordo com a idade dos filhos. Com uma criança de 10 anos, por exemplo, podemos começar o aconselhamento assim “Você viu esse cantor? Que ridículo ele bêbado, falando um monte de coisa…”. Agora, com um filho adolescente a abordagem deve ser outra: posso perguntar diretamente o que ele achou da atitude do artista, qual a sua opinião sobre a pessoa em questão e abrir, assim, um diálogo com ele.
Com filhos adolescentes não podemos chegar simplesmente determinando as coisas, tipo “você não vai nesta festa… não vai na balada…”. Precisamos fazer acordos com eles, pois não é o fato dele ir à balada ou à festa que importa, mas “como” ele se comporta nesses eventos.
Precisamos estar preocupados em aumentar a discussão desses assuntos com nossos filhos. Tínhamos um programa na USP, através do qual fizemos 9 intervenções nas escolas sobre álcool e outras drogas e, com isso foi possível aumentar a discussão do assunto nas casas. Na época, medimos o resultado deste estudo e entre os jovens que tinham a discussão do assunto em casa, diminuíram em 60% a experimentação de álcool, tabaco, maconha e crack.
Então, meu conselho é que não devemos perder nenhuma oportunidade de entrar com esse aconselhamento breve e discutir esses assuntos com nossos filhos.
Pergunta: Entre tantas válvulas de escape buscadas pelas pessoas no isolamento causado pela pandemia do novo coronavírus, o consumo excessivo e frequente do álcool é nocivo não apenas à saúde física como também à mental. Como o consumo de álcool favorece a contaminação pelo COVID-19 ou torna maior o risco de a doença evoluir para um quadro crítico e até ao óbito, em alguns casos?
Dr. Lotufo: Se você usa a bebida para se relaxar, por exemplo, você já tem um problema! E é isto o que você passa para seu filho: a ideia de que para relaxar preciso de bebida ou qualquer outro tipo de droga.
Se eu tenho problema de alcoolismo na família, é ainda mais importante conversar com os filhos e deixar isso claro, explicando a eles que a genética é fator importante para a dependência. Nestes casos, é fundamental não ter bebidas ou qualquer outra droga em casa.
Há um tempo atrás, fiz um projeto na Fundação Casa (antiga FEBEM) e concluímos que 90% dos adolescentes estão lá por problemas de álcool e/ou outras drogas. Um pai falou comigo e me questionou: “Então eu não posso beber nem um pouco em casa?”. Se você tem um problema instalado, não pode beber nem um pouco dentro (ou fora) de casa. Mas parece que isto é coisa de brasileiro: “Eu preciso disso para me alegrar, para ter prazer, para ser igual aos outros…”.
O espantoso é que, na última estatística, 50% da população brasileira não colocou uma gota de álcool na boca no último ano. Então, não é todo mundo que bebe!
Pergunta: Esse número de 50% de pessoas que não bebem é importante. Tenho amigos que me dizem que ficam com vergonha quando vão a eventos e dizem que não bebem. Acredito que isto se deva ao trabalho de marketing que as indústrias de bebidas têm feito e que criaram a máxima de que só com a bebida você pode estar numa festa com bem-estar. Aí, quem não bebe, sente-se colocada de lado.
Dr. Lotufo: Podemos traduzir isto para a questão do cigarro. Antigamente, quem não fumava se sentia mal dentro de restaurantes. Hoje, é o contrário: quem fuma é que se sente mal. E como conseguimos isso? Temos leis fortes e claras sobre onde você pode ou não fumar e retiramos as propagandas da mídia de tabaco. Conseguimos diminuir o índice de fumantes no Brasil de 30% para 9,3% e somos reconhecidos no mundo por nossa luta anti-tabágica.
Sabemos o que fazer para diminuir o consumo do álcool. Mas o lobby da indústria de álcool é fortíssimo. Essa indústria é grande anunciante em rádios e TVs. Precisamos de leis que proíbam a propaganda de álcool das 06h00 às 21h00, que é o horário em que as crianças assistem à TV.
Agora, voltando à pergunta, como o consumo de álcool favorece a contaminação por COVID-19: vou fazer uma comparação com a gravidez não planejada em adolescentes. Montei no Hospital da USP um ambulatório para meninas que tiveram filhos abaixo dos 17 anos de idade e constatei que grande parte dessas meninas engravidou depois de ingerir bebida alcoólica ou consumir outras drogas. Podemos concluir que, depois de consumir essas substâncias, toda proteção foi deixada de lado.
Traduzindo isso para o COVID-19, podemos concluir que toda proteção poderá ficar prejudicada: o indivíduo não vai fazer a assepsia direito com álcool gel ou sabão, não vai usar ou vai tirar a máscara de qualquer jeito e por aí vai…
Pergunta: De acordo com uma pesquisa de uma universidade de Wuhan, na China, as pessoas que fumam têm 14 vezes mais chances de desenvolver quadros graves de Covid-19 do que os pacientes que não possuem o hábito e também constatou que até aqueles com histórico de tabagismo têm um risco 14% maior de desenvolver pneumonia quando infectados pelo novo coronavírus. Como se dá a possível contaminação de um indivíduo pelo simples fato de fumar? O risco de contaminação é o mesmo para fumantes de cigarro normal, cigarro eletrônico e narguilé, por exemplo?
Dr. Lotufo: Se pensarmos que hoje se fuma muito em grupo – em fumódromos, por exemplo – esse grupo estará junto, sem máscara e isto já é um fator de risco de contaminação. Quando pensamos no narguilé, é ainda pior: ele vai rodando de uma pessoa a outra e você pode ter uma transmissão inclusive mais próxima através da boca do narguilé. Com o cigarro eletrônico teremos a mesma condição de transmissão, devido ao compartilhamento do mesmo.
Definitivamente, passar álcool gel nas mãos, usar máscaras e fumar não combinam! Este é um bom momento para que os fumantes aproveitem para deixar de fumar. Já que você está confinado, não saia para a rua para comprar cigarros e use artifícios como adesivo ou pastilhas para repor a nicotina.
Pergunta: A fumaça do cigarro contém os mesmos compostos tóxicos e cancerígenos que a fumaça tragada pelo fumante, porém em níveis bem mais elevados: 3 vezes mais nicotina, 3 vezes mais monóxido de carbono e até 50 vezes mais substâncias cancerígenas, o que causa prejuízo também a nossos filhos e pais idosos, chamados de fumantes passivos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o tabagismo passivo é a terceira maior causa de morte evitável no mundo, perdendo apenas para o tabagismo ativo e o consumo excessivo de álcool. Quais suas recomendações para os fumantes durante este isolamento social, visando a preservação da saúde do próprio fumante e das demais pessoas que convivem na casa, sobretudo as crianças e os idosos?
Dr. Lotufo: Um dos dados que a gente mais passa para pais e mães fumantes é o do aumento de duas a cinco vezes do número de mortes súbitas em recém-nascidos em casa de pais fumantes. Aumenta também, nessas casas, a quantidade de pessoas com problemas de asma, bronquite, otite e todas as infecções respiratórias.
Antes do fumo ser proibido dentro de restaurantes aqui em São Paulo, 24% das crianças de 0 a 5 anos que vinham ao pronto socorro por outras queixas tinham nicotina na urina, indicando ser esta criança um fumante passivo.
Outro dado alarmante é 25% a mais de câncer e infarto em esposas não fumantes de maridos fumantes ou vice-versa. Isto quer dizer que morar com um fumante é prejudicial à saúde. Durante a quarentena, ainda mais! Precisamos pensar sobre isso.
* Dr. João Paulo B. Lotufo é Doutor em Pediatria pela Universidade de São Paulo, Representante da Sociedade Brasileira de Pediatria nas ações de combate ao álcool, tabaco e drogas, Coordenador/Presidente do grupo de trabalho no Combate ao Uso de Drogas por Crianças e Adolescentes na Sociedade de Pediatria de São Paulo e Diretor da ISSUP Brasil. Também é Membro da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira (AMB), Responsável pelo Projeto Antitábagico do Hospital Universitário da USP e Responsável pelo Projeto Dr Bartô e os Doutores da Saúde – Projeto de Prevenção de Drogas no Ensino Fundamental e Médio.