Um artigo publicado no Jornal O Globo na última semana de fevereiro/2023, contesta um artigo anterior do mesmo jornal intitulado “O dilema do cigarro eletrônico” e publicado no dia 21/02, em que o autor do mesmo defendia que o cigarro eletrônico “é um produto de risco reduzido à saúde” e que “há estudos confiáveis que comprovam a redução de riscos dos dispositivos”.
Em resposta a este artigo, dois especialistas da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia – SBPT, Dra. Margareth Dalcolmo – membro titular da Academia Brasileira de Medicina e presidente da SBPT – e Dr. Paulo Correa – Coordenador da Comissão de Tabagismo da SBPT – rebatem a publicação anterior, trazendo informações científicas confiáveis, publicadas em veículos de boa qualidade e que, em sua maioria – assim como os pneumologistas da SBPT defendem – afirmam que não há como considerar a “redução de danos” em dispositivos eletrônicos para fumar (DEF).
Segue abaixo o texto na íntegra, como publicado no Jornal O Globo:
“Em 21 de fevereiro, O GLOBO publicou o artigo “O dilema do cigarro eletrônico”, cujo autor defende que o cigarro eletrônico “é um produto de risco reduzido à saúde” e que “há estudos confiáveis que comprovam a redução de riscos dos dispositivos”. Em resposta, é preciso registrar que, ao contrário, a maioria maciça dos artigos científicos publicados de boa qualidade demostra – e pneumologistas da SBPT defendem – que não há como considerar a “redução de danos” em dispositivos eletrônicos para fumar (DEF). Sabedores de que tais dispositivos podem conter quase 2 mil substâncias, a maioria não revelada pela indústria, e que os fabricantes não são transparentes quanto a sua composição, a questão se agrava ainda pelos conhecidos riscos específicos – como inalação de propilenoglicol e metais – que não podem ser comparados ao risco do cigarro convencional.
Em publicação recente na revista Chemical Research in Toxicology, pesquisadores da Universidade Johns Hopkins usaram técnicas avançadas de cromatografia líquida para analisar as substâncias presentes em quatro dispositivos populares de cigarro eletrônico, Juul, Vuse, Blu e Mi-Salt (Smok). Constataram que há quase 2 mil produtos químicos no e-líquido e/ou aerossóis dessas marcas, a maioria não divulgada pelos fabricantes. Entre esses, foram detectadas três substâncias químicas industriais e um pesticida. Até a cafeína, cujos efeitos na forma inalada são uma incógnita, foi encontrada em amostras dos modelos Vuse e Mi-Salt.
Outro estudo, publicado no periódico Inhalation Toxicology, observou que há vazamento de metais pesados das serpentinas (coils) para os e-líquidos (juices) dos dispositivos eletrônicos para fumar. Nas amostras, foram encontrados alumínio, ferro, cromo, cobre, níquel, zinco e chumbo, o que eleva o risco de câncer entre os consumidores, além de outras doenças respiratórias, cardiovasculares e neurológicas. Portanto nos parece descabido e inconcebível que seja regulamentado um produto com vários riscos estabelecidos, cuja maioria dos constituintes não se conhece. Reafirmamos com convicção que a melhor saída seria a não fabricação e a fiscalização adequada para evitar sua entrada e venda ilícita no Brasil, como hoje praticada.
Pesquisas apontam que a exposição ao aerossol dos cigarros eletrônicos também apresenta danos para quem não os fuma, como descrito em trabalho publicado em 2021 pela revista Tobacco Control. Reconhecemos com preocupação a experimentação crescente de cigarro eletrônico entre crianças e adolescentes no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) do IBGE desde 2019.
Estudo conduzido por especialistas da SBPT e publicado no Jornal Brasileiro de Pneumologia em 2022 alerta, ainda, sobre a falsa promessa de “redução de danos” da indústria do tabaco, que, desde os primórdios, ludibria consumidores com propostas de “cigarros mais saudáveis”, com filtro, menores teores de nicotina e alcatrão, entre outras seduções, mantendo os usuários em estágio de “pré-contemplação” e afugentando o propósito de parar de fumar. Dessa forma, a indústria do tabaco mantém os consumidores adictos e perpetua seus lucros altíssimos. É consensual entre especialistas em doenças respiratórias que essa indústria seja responsável por causar mais de 60 tipos de doenças e 12% dos óbitos do mundo, segundo estimativas da OMS, além de R$ 125 bilhões de gastos em perdas diretas e indiretas para a saúde, apenas no Brasil, segundo o relatório do Instituto de Educação e Ciências em Saúde (IECS 2020).
Por essas razões, a proibição desses produtos pela Resolução da Diretoria Colegiada nº 46 da Anvisa, em 2019, representa uma conquista para o país e deve ser acompanhada da fiscalização pelos órgãos competentes e de controle por parte da população. Como pneumologistas, tememos que haja aumento de doenças respiratórias em decorrência do uso desses dispositivos, incluindo Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), câncer de pulmão, exacerbações de asma e a síndrome respiratória aguda causada pelo uso de cigarro eletrônico ou Evali (E-cigarette or vaping use-associated lung injury), já relatada como causa de morte em jovens nos Estados Unidos, além de outras doenças cardiovasculares, circulatórias e neoplásicas potencialmente evitáveis.”
Fonte: Jornal O Globo