O uso de entorpecentes tem levado cada vez mais pessoas aos consultórios psiquiátricos

Substâncias químicas são um recurso usado pela sociedade desde os primórdios

da humanidade. Relaxamento, válvula de escape ou cura de doenças: seja qual for a justificativa, o fato é que as drogas estão presentes no nosso dia a dia. O tema é espinhoso. Nem mesmo entre a comunidade médica há consenso sobre efeitos ou sobre o que leva alguém a recorrer a entorpecentes.

O assunto, contudo, tem sido discutido como nunca: as drogas e seus efeitos foram temas de grande parte das palestras do 32º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em Brasília, em 2014. Além da legalização ou não de substâncias hoje ilícitas, como a maconha, a comunidade médica discute outro ponto importante: quais são os efeitos das drogas no cérebro a longo e a curto prazo?

“Seria impossível detalhar os efeitos de todas as substâncias. Você precisaria de um tratado, não de uma matéria de jornal”, disse Analice Gigliotti, membro do Departamento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Fato é que todas têm em comum a ação da dopamina e o sistema de recompensa cerebral (ou sistema mesolímbico dopaminérgico). As drogas liberam dopamina para o chamado núcleo accumbens, estrutura cerebral ligada à sensação do prazer. “O uso contínuo de drogas faz uma regulação para baixo, que chamamos de down regulation, de tal forma que existe diminuição da neurotransmissão dopaminérgica”, detalha a médica. “Isso faz com que a pessoa sinta menos prazer nas coisas em geral e com a própria droga, precisando de doses maiores para obter o mesmo efeito.“

Evolutivamente falando, o mecanismo de recompensa serve para que a ação prazerosa — comer, procurar um lugar quentinho no inverno ou fazer sexo — seja repetida, a fim de preservar a vida. O problema é que a repetição pode fazer com que outras fontes de prazer percam significado, ou seja: só a substância importa. O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) e especialista em dependência química, explica que isso acontece porque as drogas acabam por subverter o sistema de recompensa, o que ocasionará a disfunção no cérebro.

Para o especialista, a desinformação da mídia e a glamourização das substâncias químicas são outros culpados pelo surgimento do vício. Analice Gigliotti completa: a dependência de substâncias químicas é uma doença social. Há o fator genético e o hábito, que pode passar de pai para filho. “Há famílias inteiras de alcoólatras”, argumenta. “Famílias de pessoas mais impulsivas fazem com que os outros membros da família tenham predisposição maior a experimentar drogas.”

Além do fator biológico, há o psicológico. Indivíduos naturalmente ansiosos, depressivos ou que tenham passado por experiências traumáticas na infância, por exemplo, têm mais tendência a se encantarem por alternativas à realidade. A sociedade entra como o terceiro pilar da procura pelas drogas. “Famílias mais permeáveis ao álcool, por exemplo, aumentam o risco de filhos alcoólatras. Se a pessoa é filha de traficante, vê drogas em casa e tem maiores chances de experimentar.”

“Estamos em um momento delicado, em que há uma diminuição da percepção de risco”, alerta a médica. A prova disso é a quantidade cada vez maior de usuários de drogas em consultórios psiquiátricos. “Não precisa nem de análise estatística.” Quanto mais precoce o início do uso, maiores as chances de a pessoa desenvolver transtornos psiquiátricos associados ao uso, como dependência. Uma pessoa que comece a fumar maconha com 14 anos tem uma probabilidade de 17,4% de desenvolver algum transtorno — o que é preocupante, visto que 62% das pessoas que iniciam o uso de maconha o fazem na adolescência. Alguém que fume diariamente tem uma probabilidade de 35% a 40% de se tornar um dependente.

Sérgio de Paula Ramos, médico, especialista em dependência química e membro da Associação Brasileira de Psicanálise, da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas, concorda com Analice Gigliotti: a relação com a família influencia bastante na busca pelas drogas. O indivíduo em si, claro, também é determinante. “Na trajetória brasileira de dependência química, ela começa a ocorrer por volta dos 12 anos, com a experimentação do álcool.” O caminho da dependência passa ainda pela maconha (aos 15 anos) e, aos 17 ou 18 anos, pode chegar à cocaína e ao crack.

Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2014/11/16/interna_revista_correio,456364/entre-o-prazer-e-a-dependencia.shtml