*Por Valentim Gentil. Debates e interpretações envolvendo legislação sobre dependência química vêm se desenvolvendo. Recentemente, abriu-se maior espaço para tolerância social em relação ao consumo recreativo da cannabis. Mudanças em leis estaduais, nos Estados Unidos, e a aprovação pelo Uruguai de um comércio controlado pelo governo são prova disso.
Políticos e outras lideranças, convencidos do fracasso da estratégia convencional de enfrentamento do consumo crescente de drogas em escala mundial, optaram por liberalizar o consumo da cannabis com a justificativa de que seria um mal menor. Assim, a descriminalização do consumo seria um vertedouro aceitável num sistema de contenção tradicional sobre o qual se acumulam pressões. Essa opção, no entanto, pode ter sido equivocada, pois os problemas se agravam, dificultando ainda mais um encaminhamento consistente para uma situação que, por si própria, é de enorme complexidade. E isso porque a maconha e outras preparações da cannabis ricas em delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC) comprovadamente prejudicam o funcionamento cerebral, com redução da memória, aprendizado e inteligência e agravam transtornos mentais preexistentes. Mais que isso: essas substâncias perturbam gravemente o amadurecimento da personalidade, a integração das experiências emocionais e, principalmente, atuam como componente causal em psicoses. Por tudo isso, de forma absolutamente preocupante, põem em risco a saúde geral da população, com consequências que sequer podem ser devidamente avaliadas.
Um dos possíveis facilitadores dessa atitude liberalizante em relação à cannabis é que seus efeitos agudos e transitórios sempre chamaram mais a atenção que as ações permanentes e irreversíveis. Talvez por isso se afirme que a maconha é menos prejudicial que o álcool e o tabaco. Na realidade, a discussão sobre a legalização de drogas ilícitas tenta transmitir uma mensagem de segurança que as evidências absolutamente não justificam. A consequência imediata da suposição de menor risco é o aumento do uso dessas substâncias, o que tem sido constatado em vários países, entre eles Estados Unidos e Uruguai, conforme o Relatório Mundial sobre Drogas de 2013, da Organização das Nações Unidas (ONU). Antes de aprovar leis que comprometam profundamente a saúde pública, vale a pena conhecer os fundamentos dessas afirmações. Relatos de efeitos psicotogênicos (geradores de surtos psicóticos) de preparações da Cannabis indica e Cannabis sativa constam de textos milenares. Eles aparecem, por exemplo, detalhadamente no livro Haxixe e Alienação Mental – estudos psicológicos, de Jacques Joseph Moreau (de Tours), publicado em 1845. Uma psicose por haxixe foi mencionada em relatório de uma Comissão Britânica na Índia, em 1890.
George Ewens (1864-1913), médico do exército britânico, cunhou o termo “psicose canábica” em artigo na Indian Medical Gazette, de Calcutá, em 1904. Desde então, discute-se o papel da cannabis como causa, desencadeante ou agravante de psicoses, mania, depressão, ansiedade e pânico, entre outros quadros psiquiátricos. Uma mudança na avaliação dos riscos da maconha, haxixe, skunk e outras preparações da cannabis no Brasil, fica evidente na comparação das Diretrizes sobre Abuso e Dependência de Maconha da Associação Médica Brasileira de 2002 e 2012. Na primeira, a droga é considerada “capaz de piorar quadros de esquizofrenia, além de constituir um importante fator desencadeador da doença em indivíduos predispostos”. Na segunda consta que o uso crônico de maconha leva ao “aumento das taxas de ansiedade, depressão, bipolaridade e esquizofrenia”. Minha experiência profissional corrobora essas advertências. Em 1973, atendi um paciente de 25 anos, internado no Maudsley Hospital, em Londres, que recebera o diagnóstico de “psicose canábica”, pois sua doença fora decorrente de uso frequente de cannabis. Dois anos antes, quando saíra em viagem ao exterior, seus parentes e amigos o consideravam inteligente, equilibrado, “normal”. Ao retornar, estava psicótico – como o personagem do filme Uma longa viagem, de Lúcia Murat (lançado em maio de 2012). Não havia história de psicose em sua família. Além das alucinações auditivas permanentes, de falar “sozinho”, apresentar “riso imotivado” e pensamentos “mágicos” ou “mirabolantes”, o paciente não respondia bem aos tratamentos convencionais. À época, pensei que a cannabis fosse apenas um agravante, pois seu quadro psiquiátrico correspondia ao da esquizofrenia.
Fonte: http://uniad.org.br/images/stories/pdf/MACONHA_E_DEM%C3%8ANCIA_PRECOCE_2014_SciAmBrasil.pdf