*Por Marcelo Ribeiro
Todo mundo que já tentou economizar um dinheiro ou perder peso
tendo um objetivo e uma meta muito bem definidos, justamente no período em que estava altamente disciplinado e guiado por uma certeza inquebrantável acerca da necessidade daquela atitude, repentinamente, do nada, viu seu investimento sólido desmoronar como um castelo de areia perante uma liquidação sem graça, ou se deixou levar por um inesperado hambúrguer, batatas fritas e milk-shake, numa tarde em que fora às compras, no shopping, sem ter-se alimentado antes. O problema da dependência passa justamente por essa circuitaria cerebral – o sistema de recompensa – só que numa intensidade muito mais grandiosa e irrefreável.
A decisão de mudar é absolutamente racional, consciente. No entanto, o desejo de continuar consumindo – drogas, alimentos calóricos, “comprinhas” – é um emaranhado de processos associativos aprendidos e não-aprendidos que disparam automaticamente, independentemente da vontade da pessoa, levando a um amálgama de sentimentos, fissuras, impulsos e… recaídas naquele comportamento indesejado. Isso se torna ainda mais provável quando o cérebro é exposto de forma perene ao estresse ou de modo agudo e intempestivo à hostilidade – parece que nessas situações ele se vê propenso a trocar o seu reino de estabilidade por uma recompensa imediata, mesmo sabendo, ‘conscientemente’, que no instante seguinte à violação de sua abstinência, de sua dieta ou de sua poupança esse tão sonhado objeto do desejo o transformará apenas no mais vazio dos mortais.
Desse modo, é essencial que o dependente de substâncias psicoativas saiba – assim como sua família – que, via de regra, quando ele decide entrar em recuperação, quase sempre está pronto para dizer “sim” para a abstinência, mas não está preparado para dizer “não” ao consumo. Nos primeiros tempos o dependente químico é um refém das oportunidades de uso: ele genuinamente quer abandoná-lo, mas sucumbe aos seus apelos mais rudimentares.
A cena do piloto de avião, William Whitaker (Denzel Washington, O Voo, 2012), no quarto de hotel à beira da janela, entre um frigobar cheio de bebidas alcoólicas e a visão de uma aeronave e o barulho de suas turbinas ao longe resume precisamente o impasse da dependência: bastava ao protagonista do filme aparecer no dia seguinte perante a comissão que investigava a queda do avião sob o comando do piloto – acusado de estar embriagado durante aquela queda na qual seis pessoas morreram –, negar as acusações e provas habilmente anuladas por seus advogados, para recuperar sua licença de aviador e livremente voltar irromper os céus do planeta.
Além do mais, o piloto entrara em recuperação – de início “para fazer cena” – mas acabou envolvido pelo clima das reuniões e seus preceitos. Nada parecia capaz de tirá-lo do prumo, o personagem sentia-se orgulhoso pela mudança de vida que operara em tão curto espaço de tempo, e feliz com a perspectiva de futuro que se abria novamente para ele – parecia voar em céu de brigadeiro. No quarto em que estava hospedado havia apenas água, no frigobar, e não passava pela cabeça do nosso quase-herói sair para beber escondido. Até que um rangido de porta semiaberta despertou sua curiosidade: era um acesso para o quarto ao lado, também com um frigobar. Esse, lotado de bebidas.
De volta ao início do parágrafo anterior, nosso quase-herói se viu entre o futuro promissor – livre de prejuízos e penalidades – e a recompensa imediata. Tentou algumas estratégias de enfrentamento. Todas pífias. Como se sabe, no início da recuperação, a blindagem pessoal e a evitação de estímulos são sempre a melhor estratégia. Sucumbiu. A menos de doze horas de sua redenção, o capitão William bebeu todo o frigobar. Todinho. Foi encontrado na manhã seguinte por seus advogados em estado lastimável. Mas isso não é um spoiler – prometo aos que continuarem lendo, que não “estragarei” o final desse belíssimo drama hollywoodiano com contornos didáticos. Era óbvio que o capitão — naquele momento ainda um refém das oportunidades — tendo o seu mundo mapeado para o consumo, trocaria o seu céu estrelado pela euforia de uma embriaguez.
A redenção virá adiante, quando o piloto, mais uma vez após uma ação combinada de truques e segredos com os seus advogados, se coloca disfarçadamente alcoolizado perante a comissão investigadora, bastando simplesmente negar que bebera para retomar sua vida. Posso dizer apenas que, nesse momento crucial, nosso protagonista finalmente se converteu em herói completo: em primeiro, porque aceitou sua missão, em segundo porque compreendeu que as missões heroicas – se realmente são dotadas dessa qualidade – não são passíveis de serem escolhidas, muito menos negadas – elas são dadas, conferidas pelo senso ético que brota dos recônditos da psique. Resta ao herói, apenas, executá-las e cumpri-las pelo bem de sua sanidade e daqueles que o rodeiam – ou como sugere o título desse artigo, para deixar de ser refém de gatilhos e de impulsos imediatistas que tudo podem, em prol da liberdade de conviver com suas próprias escolhas.
*Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).