Quais os direitos das crianças?
Um deles é o direito a brincar, uma vez que o brincar se apresenta como ferramenta essencial para a sua saúde durante seu crescimento e já que ela se descobre na brincadeira, bem como apreende o mundo de forma lúdica, vivenciando as experiências de forma adequada à sua idade. A criança que brinca constrói uma estrutura psicológica e emocional resiliente e muito mais preparada para enfrentar os desafios do mundo adulto no futuro.
Já é comprovado que grande porcentagem das crianças que se encontram em situação de vulnerabilidade busca nas ruas atividades que lhe proporcionem brincadeira, diversão e lazer, sendo as drogas um instrumento que permite atingir tal objetivo. Logo, se esses jovens fazem uso das drogas buscando – entre outras coisas, mas principalmente – o lúdico; então a garantia do direito ao brincar representaria uma forma de prevenção ao uso das drogas na infância e juventude.
Outro direito que as crianças têm garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é o direito à liberdade, e tal direito compreende a liberdade de opinião e expressão (art. 16, II). Em outras palavras, a criança e o adolescente podem e devem emitir opinião.
Mas será que as crianças estão sendo ouvidas neste momento de pandemia? O quanto isto interfere na sua saúde mental e na prevenção ao uso de drogas?
Neste brilhante artigo, Dr. Luiz Antonio Miguel Ferreira, Dr. Luiz Gustavo Fabris Ferreira, Dra. Lygia T. Durigon e Dra. Clarice Krohling Kunsch, trazem uma abordagem crítica a respeito da atual situação vivenciada por toda a população, em especial as crianças. Muitas vezes as ações tomadas não estão realmente beneficiando as crianças e os adolescentes, os quais podem e devem ser ouvidos para que as metas e os planos sejam devidamente traçados.
Leia o artigo na íntegra:
01.
As crianças, até há pouco tempo, eram ignoradas ou sem relevância social ou legal. Seus desejos, opiniões e sentimentos tinham pouca ou nenhuma importância. Não deveriam se manifestar e sequer eram ouvidas.
Foi com a entrada em vigor da Constituição Federal e depois do Estatuto da Criança e do Adolescente que ocorreu uma ruptura legal deste paradigma. Passou-se a considerá-las, de maneira correta, como verdadeiros sujeitos de direitos e de garantias. Direitos iguais aos dos demais cidadãos, como, por exemplo, direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros.
Em razão desta mudança, novos horizontes se descortinaram para as crianças e adolescentes, posto que reconhecendo-os como sujeitos de direitos, ganharam voz. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao tratar do direito à liberdade, deixou expressamente consignado que tal direito compreende a liberdade de opinião e expressão (art. 16, II). Em outras palavras, a criança e o adolescente podem e devem emitir opinião.
Para determinadas situações, como, por exemplo, a colocação da criança ou adolescente em família substituta, a sua manifestação de vontade é extremamente relevante. Diz a lei: “sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada” (ECA., art. 28, § 1º). Ato contínuo, o § 2º do mesmo artigo ainda ressalta, indo além: “Tratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu consentimento, colhido em audiência”. No mesmo sentido, o Estatuto na parte que trata sobre a adoção estabelece, novamente: “em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento (ECA., art. 45, § 2º).
Todo este procedimento tem uma lógica, ou seja, medidas que serão tomadas em relação à criança e ao adolescente, precisam levar em consideração a sua manifestação de vontade, a sua opinião, o seu consentimento. Dessa maneira, será devidamente valorizado o seu “superior interesse”, que é o princípio que norteia todas as relações infanto-juvenis. É necessário perguntar à criança e ao adolescente o que estão sentindo em relação a sua situação pessoal, familiar, cultural, social etc.
02.
E essa manifestação de vontade, de liberdade de expressão e opinião deve ser colhida, dentro da esfera jurídica, com as cautelas necessárias, visando, sempre, preservar os direitos fundamentais da criança e prevenir a ocorrência de violência.
Nesse sentido, foi editada a Lei n. 13.431/2017, que estabeleceu procedimentos para oitiva de criança e adolescente vítima ou testemunha de violência. Apontou-se como direitos das crianças e dos adolescentes, entre outros, ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer em silêncio; ser ouvido em horário que lhe for mais adequado e conveniente; sempre que possível, prestar declarações em formato adaptado (isto, para crianças e adolescentes com deficiência) ou em idioma diverso do português.
Define ainda a referida legislação duas formas de ser realizada a oitiva da criança ou do adolescente:
Art. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.
Art. 8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.
Constata-se do exposto, que a legislação demorou, mas finalmente reconheceu o direito da criança e do adolescente se manifestar e emitir a sua opinião, estabelecendo até um rito especial para esse procedimento, quando se revela notícia de ilícito da qual foi vítima.
A criança e o adolescente foram, enfim, reconhecidos como sujeitos de direitos. No entanto, apesar da legislação em vigor e da mudança de paradigma, indaga-se, diante do contexto atual, a real concretização desse direito fundamental “à consideração da opinião das crianças e adolescentes”. Estaria ele sendo efetivado? A oitiva deste grupo da população está realmente ocorrendo e sendo considerada? Alguém perguntou às crianças como elas estão se sentindo?
Se, no aspecto jurídico, o lugar das crianças e adolescentes foi efetivado, cabe enfatizar a importância da escuta de seus anseios, preocupações, medos e sentimentos, na vida e nas relações cotidianas. Em um momento atípico da história, no contexto da pandemia do novo Coronavírus, a saúde mental de crianças e adolescentes deve ser objeto de atenção e, para tanto, é necessário ampliar o olhar para enxergar o que elas estão sentindo ou o que conseguem demonstrar ou expressar.
03.
Com a pandemia, que estamos enfrentando, as crianças de todo o mundo tiveram suas atividades escolares interrompidas abruptamente. Interromperam processos de aprendizagem escolar, encontros afetivos, desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais. Muitas perderam a rede de apoio e de convivência extra núcleo familiar. Perderam a liberdade de ir e vir – juntamente com seus pais, familiares, conhecidos e desconhecidos. Direitos, como o lazer e o brincar, foram restringidos. Escancarou-se a desigualdade. Desabou sobre nós a quebra de nosso cotidiano rotineiro.
Na realidade desigual do Brasil, vemos cenários bem distintos entre a rede pública e a rede particular de educação. Por um lado, a escola pública com inumeráveis dificuldades para garantir que o ensino chegue aos alunos, porque, em se tratando do básico para o ensino à distância, faltam internet, equipamentos tecnológicos e formação adequada aos professores. Alunos, professores e famílias da rede pública perderam muito. Perderam uma importante fonte de alimentação (muitas faziam a principal refeição na escola), além de viverem em situação de grande vulnerabilidade econômica, social e afetiva. O acesso ao ensino ficou limitado e o contexto social e familiar em que vivem nem sempre oferece às crianças e jovens oportunidades de desenvolvimento. E, com tudo isso, alguém perguntou a uma criança da escola pública, de baixa renda, exposta a um contexto social de vulnerabilidade, como ela está se sentindo?
Nos bastidores da rede particular de ensino, há um movimento de preocupação excessiva de escolas e famílias. Ambos os grupos ficaram perdidos entre tudo aquilo que deveriam cumprir como ideologia, metas de ensino e as obrigatoriedades previstas pelo Ministério da Educação – MEC e pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação do país. De modo geral, o movimento das escolas particulares foi de continuar tentando cumprir programas e cronogramas. O ensino remoto foi improvisado, com professores procurando estratégias de todos os tipos para engajamento dos alunos. Começou-se uma infinidade de exigências de prazos, de presenças em aulas online, entregas de trabalhos e tarefas, entre outras. O modelo se transformou, mas as exigências se mantiveram. A regra da presença em aulas e o cumprimento de tarefas continuaram valendo para crianças de qualquer idade, o que, obviamente, ignora diversos aspectos importantes da pedagogia, psicologia e do próprio direito à educação. Neste novo formato de escola, alguém perguntou às crianças como elas estão se sentindo?
Muitas das famílias se desorganizaram afetiva e emocionalmente. A convivência se intensificou e a privacidade se perdeu. O que fazer com os filhos, o que fazer com o trabalho, como cuidar da casa e como acompanhar as atividades escolares? A maioria das famílias, independentemente da realidade socioeconômica, não faz ideia de como criar condições de ensino apropriadas, simplesmente porque não tem formação e nem experiência para tanto. Os pais se estressam, exigem que os filhos realizem as tarefas e/ou que estejam atentos às aulas. As crianças resistem a realizar as tarefas pelo simples fato de estarem sendo exigidas em um contexto completamente diferente daquele em que estão acostumadas. E, principalmente, porque todos (adultos e crianças) estão emocionalmente vulneráveis.
As crianças percebem que não cumprem com as exigências impostas e se frustram. Algumas manifestam o desconforto abertamente outras, se calam. E, em algum momento, todas adoecem ou adoecerão (emocionalmente). As crianças estão irritáveis, intolerantes, ansiosas. As crianças estão com tiques, roendo as unhas, mordendo as pessoas, dormindo mal, comendo pior, infantilizando comportamentos, etc. Elas encontraram formas alternativas de expressarem o mal-estar e sofrimento. E, quase sempre, são punidas pelos novos comportamentos que apresentam.
O contexto gera sofrimento e expressá-lo de forma apropriada depende de uma série de habilidades cognitivas e não cognitivas que muitos indivíduos não desenvolveram ao longo de todo uma vida. Por que esperar isso na infância?
Escolas e famílias entraram em conflito. Na rede pública a exigência é para o mínimo, a oportunidade de manter os estudos. Na particular, o aspecto financeiro torna-se mais um motivo de preocupação. Como continuar pagando uma escola que já não é a mesma? Como manter a qualidade do ensino ou a própria instituição sem recursos? A escola cobra conteúdos para manter o cronograma, os pais exigem que os filhos cumpram e mantêm a demanda para a escola.
Após meses de ensino remoto veem-se professores estressados, alunos desmotivados e gestores ansiosos. A saúde mental de todos em alerta. É urgente, portanto, a necessidade de refletir sobre o que nós, adultos – pais, familiares, professores e gestores – estamos impondo e, sobretudo, sobre o que de fato é importante neste momento.
Se o mundo mudou, se tudo mudou, faz sentido mantermos as mesmas práticas? Se tudo mudou, se tanto se perdeu, faz sentido que as crianças simplesmente cumpram atividades e prazos? Faz sentido que as famílias cobrem os mesmos conteúdos da escola e o padrão de desempenho dos filhos num modo de aprender totalmente novo? Qual o sentido de as crianças serem avaliadas em formatos tradicionais de provas? Ainda mais pensando que a interação dos alunos com os professores ficou limitada, distante. Sem afeto é difícil que haja aprendizagem. Sem bem-estar, a relação ensino-aprendizagem é totalmente comprometida.
Se a escola tem um papel fundamental na formação dos indivíduos, faz sentido manter a rigidez do programa curricular previsto na pré-pandemia, cumprir cronogramas, e, com isso, ensinar a não flexibilizar? Faz sentido oferecer um modelo onde falta empatia, compreensão e solidariedade? Faz sentido que os professores sejam expostos a um volume maior de trabalho, mesmo estando em isolamento? Sem que tenham sido preparados adequadamente com o novo modelo de aulas virtuais/remotas/interativas/domiciliar? Faz sentido que as famílias tenham que transformar suas casas em escolas apesar do trabalho de cada um, com as intensas atividades de home office diárias e dos afazeres domésticos?
O que deve permanecer depois que tudo isso passar? Crianças com sinais de depressão, ansiedade e com outras possíveis variações de comportamento. Crianças com experiências de aprendizagem negativas. Crianças sem notas ou com excesso de notas por atividades feitas por fazer, crianças devendo atividades, projetos. Relações desgastadas entre escolas e famílias, entre pais e filhos. Professores esgotados física e emocionalmente. Sem professores saudáveis, como será o retorno?
A pandemia irá passar e o conteúdo que hoje possa estar perdido, mas que é importante, será e deverá ser adequadamente ensinado e aprendido. Há tempo para isso. Pode-se afirmar que, do ponto de vista da aprendizagem de conteúdos acadêmicos, não haverá perda irreparável. Isto é fato: uma vez que se criem oportunidades de aprendizagem, a aprendizagem ocorre. O mesmo, infelizmente, não ocorre com a saúde mental. Experiências estressoras e traumáticas geram danos, estes sim podem ser irreparáveis. E o que resta são problemas que precisarão ser remediados.
04.
Diante de um cenário que pode possibilitar o retorno às aulas presenciais, indaga-se como será a adaptação das crianças, principalmente as mais novas. As crianças querem voltar para as escolas porque querem reencontrar os amigos, professores, afetos e não porque acham que o seu aprendizado está prejudicado. O conteúdo tão valorizado precisará necessariamente ser colocado em segundo plano. Não há aprendizagem sem saúde mental preservada. Não há aprendizado sem bem-estar. É fundamental buscar-se o equilíbrio. Um novo período de adaptação deverá ocorrer, pois não ocorrerá uma continuidade de onde se parou.
O momento exige escuta. Escutar os anseios, medos, angústias e preocupações, de todos os envolvidos. Abrir espaço para conversas e expressão de sentimentos. Incluir as crianças e jovens no debate sobre como continuar. Abertura ao novo, criatividade, flexibilidade, manejo de estresse, são algumas das habilidades socioemocionais necessárias para o enfrentamento deste mundo em transformação. Incorporá-las ao contexto da escola nunca foi tão necessário.
É dever de toda a sociedade cuidar das nossas crianças e adolescentes. Começar por ouvi-los é um passo importante. Experimente perguntar agora a uma criança: “como você está se sentindo?” A resposta poderá surpreender.
Luiz Antonio Miguel Ferreira – Advogado e consultor. Promotor de Justiça aposentado do Estado de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Membro do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq e Sócio Efetivo do Todos pela Educação. Sócio do Instituto Fabris Ferreira.
Luiz Gustavo Fabris Ferreira – Advogado. Sócio do Escritório Luiz Antonio Miguel Ferreira Advogados. Sócio do Instituto Fabris Ferreira.
Lygia T. Durigon – Psicóloga (CRP 06/84744). Mestre e Doutora em Análise do Comportamento, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenou o curso de Especialização em Análise do Comportamento Aplicada ao TEA no Centro Paradigma de Ciências e Tecnologia (SP), onde, atualmente, atua como orientadora de pesquisa e docente de cursos livres.
Clarice Krohling Kunsch – Psicóloga (CRP 06/83697) e Pedagoga. Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.