A relação entre pais e filhos: fundamentos da prevenção do uso de drogas*
Na sua canção “Sapato 36” (1977), diz o cantor e compositor brasileiro Raul Seixas: “eu calço é 37, meu pai me dá 36, dói, mas no dia seguinte aperto meu pé outra vez”; e adiante “porque cargas d’água você acha que tem o direito de sufocar tantas coisas que trago em meu peito”.
E conclui com “pai, estou indo embora, quero partir sem brigar, já escolhi meu sapato que não vai mais me apertar”.
A diferença de tamanho do sapato é uma metáfora do conflito de gerações e a escolha dos próprios sapatos, uma metáfora da autonomia dos filhos ao se tornarem independentes.
Mais que prover os sapatos, ajudar a escolhê-los traduz o verdadeiro papel dos pais.
A provisão dos sapatos é da ordem do cuidado e pode implicar apenas na entrega do dinheiro necessário a sua aquisição; já a ajuda na escolha dos mesmos pressupõe, além da presença física, um saber sobre a preferência e os valores do filho, algo que é da ordem da subjetividade, da preocupação com o outro e, portanto, demanda tempo.
Tempo, em um tempo que não se tem tempo para nada. Eis a questão.
Filhos independentes, autônomos, autênticos significam filhos que vão embora; implica, portanto, em perda e separação.
A adolescência é, como todos sabemos, um período de instabilidades, marcada, inclusive, pelas mudanças físicas que surpreendem, gratificam, mas também incomodam aos próprios adolescentes e aos seus pais.
Em parte, por conta da velocidade dessas mudanças, o adolescente não tem um lugar definido e se vê colocado entre dois mundos: o da criança que não é mais e o do adulto que ainda não é.
Os pais ratificam essa posição ao lhes cobrar responsabilidades com frases do tipo “você não é mais uma criança” e ao lhe negar direitos com outras do tipo “você ainda não é um adulto”.
Mas o que efetivamente coloca o adolescente no lugar de quem não tem lugar é ouvir dos pais algo como “estude para ser alguém na vida”. O que significa que naquele momento ele não é alguém.
Os pais tentam prover aos filhos o conforto que idealizam para eles próprios, muitas vezes propiciando em excesso – e mesmo, para além de suas possibilidades – o que os filhos demandam, ao mesmo tempo em que os mantêm afastados de toda a dureza do trabalho e das responsabilidades do cotidiano.
A facilidade de ir e vir, os meios de comunicação e os avanços tecnológicos parecem ter feito dos filhos, ainda muito jovens, pessoas preparadas para a vida.
Os cuidados providos pelos pais parecem fazer suplência à criação dos filhos.
Compra-se segurança, transporte, educação, meios de comunicação, e se tem a sensação de que tudo foi dado; aparentemente têm tudo, mas em verdade têm pouco ou nada do que realmente necessitam: a verdadeira preocupação dos que por eles são os responsáveis.
De uma maneira geral, os pais se sentem preocupados com os filhos e pagam com noites insones, apreensões, ansiedade e medo o preço dessas preocupações.
É natural e saudável para os filhos que os pais se preocupem com eles.
No entanto – quando se trata de verdadeira preocupação – ouvi-los e saber o que se passa é de fundamental importância para se evitar atitudes intempestivas e melhor orientá-los em relação ao futuro.
Suponhamos, por exemplo, que o colega que daria carona ao filho na volta para casa, no horário que esse combinara com os pais, se encontrava alcoolizado e ele preferiu não arriscar, aguardando algum tempo até providenciar outra forma de condução.
Se não houver de parte dos pais o espaço necessário para a análise desse fato, mas apenas a repreensão pelo atraso, dois possíveis caminhos podem ser tomados:
a) submissão, sempre, ao estabelecido, ainda que com o risco de pagar com a própria vida, como tem acontecido a milhares de pessoas nos acidentes de veículos quando se combina uso de álcool e direção ou
b) um distanciamento em relação aos pais, não se estabelecendo acordos ou descumprindo o que fora estabelecido por julgá-lo inaceitável.
Outro aspecto relevante no desenvolvimento das crianças e dos adolescentes diz respeito à identificação pelo ter, uma marca dos tempos atuais onde o processo de inclusão social se faz pelo poder de consumo e da qualidade do que se consome.
Há uma generalização das necessidades em detrimento dos valores individuais.
Se a moda é usar uma determinada marca, frequentar um determinado local, assistir ao show de uma determinada banda, todos devem fazê-lo – e isso não apenas entre os jovens; para os adultos, a boa norma pode ser ter taxas de colesterol sob controle, ser esbelto, parecer jovem, frequentar determinado restaurante e assim por diante.
Trata-se de um processo de alienação ao mercado, intermediado pelo poder da propaganda a serviço do capital, cujos princípios não incluem o outro enquanto objeto de suas preocupações, mas reduzido à condição de consumidor.
À medida que esses processos de indiferenciação avançam, a suplência a uma identidade própria se faz de forma concreta.
Aí reside o avanço da estética corporal que inclui as cirurgias plásticas, a malhação, o uso de anabolizantes, as tatuagens, os “piercings”; bem como as práticas transgressivas, que vão da simples subversão de costumes, passando pelo abuso de drogas, até a organização em grupos fundamentalistas com acentuada intolerância às diferenças.
* Texto na íntegra escrito por Tarcisio Matos de Andrade, do Departamento de Medicina da Faculdade de Medicina da Bahia e publicado em: https://www.scielosp.org/article/csc/2007.v12n5/1118-1120/#ModalArticles